Entre os dias 9 e 11 de maio de 2019 aconteceu na
cidade de Bom Jesus, no extremo sul do Piauí, a IV Mostra Terra em Cena e na
Tela, articulada por meio da parceria entre grupos de pesquisa e extensão da
Universidade de Brasília (UnB) – Terra em Cena - e da Universidade Federal do
Piauí (UFPI) – Cenas Camponesas e Nagu (Núcleo de Agroecologia do Vale do
Gurguéia).
A atividade reuniu cerca de
quatrocentas pessoas no decorrer dos três dias, em diversas atividades: mesas
temáticas, oficinas de teatro e cinema, apresentação de peças e filmes, debate
com os realizadores, noites culturais, além de diversos momentos de integração
e intercâmbio que emergiram espontaneamente no encontro.
As três primeiras Mostras ocorreram
na Universidade de Brasília (campus Planaltina), nos anos 2013, 2017 e 2018,
como momento culminante das atividades do programa de extensão e grupo de
pesquisa Terra em Cena. A partir da III Mostra recebemos como convidado o Cenas
Camponesas, um grupo de teatro criado pela professora Kelci Anne Pereira, com
estudantes do curso de Licenciatura em Educação do Campo (Ledoc) da UFPI, da
área de habilitação em Ciências Humanas e Sociais. Na avaliação da III Mostra
decidimos fortalecer e expandir a relação entre universidade, movimentos
sociais e grupos de teatro e audiovisual formados pelos ou com os estudantes das
Licenciaturas em Educação do Campo da UnB e da UFPI. Um dos encaminhamentos foi
descentralizar a Mostra, realizando a quarta edição no Nordeste brasileiro, em
Bom Jesus.
A coordenação do encontro na UFPI
foi composta pelo grupo de teatro Cenas Camponesas, pelo grupo de pesquisa
Nagu, por professores/as da Ledoc-UFPI, Comissão Pastoral da Terra (CPT) e
Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), sendo a primeira vez que os últimos
dois grupos se somam na construção e participação da Mostra. A presença dos
estudantes da UFPI foi bastante diversificada, com muitos estudantes de outros
cursos participando de vários espaços do evento.
A delegação que saiu de Brasília foi composta por
professores da Ledoc da UnB, por professores da Secretaria de Educação do
Governo do Distrito Federal, cursistas do programa Escola da Terra, ofertado
pela UnB em parceria com a SEDF e com o MEC, e por integrantes de três dos
elencos do programa Terra em Cena: o Vozes do Sertão Lutando Por Transformação
(VSLT), que apresentou a peça “Se há tanta riqueza por que somos pobres?”, o
“Arte Kalunga Matec”, da comunidade Engenho II do quilombo Kalunga em
Cavalcante, e o elenco da Escola de Teatro Político e Vídeo Popular do Distrito
Federal. Além disso, estiveram presentes os cineastas Adirley Queirós e Joana
Pimenta, do Ceicine, e a documentarista e professora aposentada da Faculdade de
Comunicação da UnB, Dácia Ibiapina. Ambos apresentaram filmes premiados em
diversos festivais: “A cidade é uma só?”, de Adirley Queirós, e “Carneiro de
Ouro”, de Dácia Ibiapina. A produção de Dácia aborda o trabalho dos cineastas
da cidade de Picos (PI), em particular a obra de Dedé Rodrigues, o qual também
esteve presente no evento, exibindo o filme “O sanfoneiro tocou no inferno”.
A produção teatral apresentada deu
mostra da vitalidade e da necessidade do teatro político nos tempos atuais. O
Coletivo Cenas Camponesas estreiou a segunda peça de seu repertório, abordando
o confronto entre os modos de produção camponês e do agronegócio no campo
brasileiro, a partir de livre adaptação da peça “Posseiros e Fazendeiros”,
construída em 2004 pelo grupo do MST Filhos da Mãe..Terra (SP), como exercício
de adaptação de Horácios e Curiácios, de Bertolt Brecht. Em cena foi
apresentado um projeto de pesquisa de grande complexidade: evidenciar as
relações entre o ciclo de ditaduras latino-americanas da década de 1960 do
século passado com o modelo do agronegócio, iniciado décadas antes por meio da
Revolução Verde. O público se deparou com dados, imagens, cenas alegóricas,
momentos de mística, num ato estético e pedagógico que demonstra a consciência
do direito à cultura e a arte, por parte dos povos e educadores/as do campo.
Com a mesma peça em cartaz há dois
anos, o VSLT apresentou uma versão da narrativa construída coletivamente, na
qual se observa o aprofundamento da pesquisa corporal e musical desenvolvida
pelo grupo, cada vez mais consciente das raízes históricas e estéticas
afrodescendentes que representam. Recorrendo à estrutura rítmica ditada pelo
atabaque, os corpos encenam poemas de Drummond mesclados a formas clássicas do
teatro político, gerando uma atmosfera poética e política que envolveu o
público, sobretudo, quando os recursos do teatro tribunal foram acessados. A
peça chega no ponto alto no momento em que o elenco desce do palco e os atores
se misturam com a plateia, transformando a cena em grande assembleia em que
debatem os rumos da mineração na região da Chapada dos Veadeiros.
A terceira peça, da brigada de
agitprop Marisa Letícia, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) do Piauí,
abordou a Reforma da Previdência, a partir da estrutura formal do teatro de
agitprop, com bases coreográficas e coros bem demarcados, conforme permitem as
condições objetivas do teatro feito na rua e para o povo. A fatura do conjunto
das três obras é de que existe um campo bastante fértil para a expansão do
teatro político, sobretudo, quando os grupos encaram suas funções como
multiplicadores, formando mais grupos pelas comunidades, escolas e organizações
por onde passam, ampliando dessa forma a capacidade de auto-representação da
classe trabalhadora.
Nesse sentido, as oficinas de teatro
e cinema se apresentaram como momentos relevantes de formação, colaborando para
que os coletivos e movimentos envolvidos na Mostra se apropriassem um pouco
mais dos meios de produção artísticos, como armas indispensáveis na luta
cultural contra a barbárie, que marca a condução política do país. Teatro do
Oprimido, com ênfase na coringagem, Teatro Épico, com foco no coro, teatro de
agitação e propaganda, uso do celular para a elaboração de documentários e a
produção cinematográfica contra hegemônicas foram temas abordados nas oficinas,
se forjaram também como espaços de debate sobre as peças e filmes assistidos
anteriormente.
O seminário “arte, educação e
direitos humanos”, que abriu a Mostra animado pelas exposições e análises da
professora Pâmela Peregrino (UFSB) e do professor Rafael Villas Bôas (UnB),
colocou questões centrais para o evento e seus desdobramentos futuros.
Uma delas é que o esforço artístico dos coletivos
da rede Terra em Cena deve voltar-se não só para a elucidação, no conteúdo, do
desmonte democrático sob a égide fascista, que marca a conjuntura nacional com
efeitos regressivos de largo alcance na estrutura de direitos do povo. É
necessário que a lucidez na análise política se reverta em força poética, que a
estrutura formal das produções potencialize o estudo e a historicidade dos
temas abordados. Temos a tarefa de
imaginar e realizar coletivamente obras que, por um lado, desconstruam
– em seu processo, conteúdo e resultado estético – os padrões burgueses, e
que, por outro lado, mobilizem o público a percorrer rotas sensíveis mais
humanistas na percepção da narrativa do real e da condição humana em nosso
tempo. E todo esse potencial formativo
se completa com a circulação das obras: elas precisam ser cada vez mais
apresentadas e debatidas abertamente em espaços populares, nas escolas, juntos
aos sindicatos e movimentos como o testemunho do trabalho desalienado na arte e
da ação agregadora que ela pode gerar. Essa intencionalidade e alcance social,
ao serem buscados pelos coletivos da Rede, é que formam o link entre os trabalhadores em cena e os trabalhadores na plateia,
e podem fermentar a resistência à barbárie, mobilizar o pertencimento a uma classe que se autodetermina e representa,
no palco, nas ruas, na vida, na política.
Kelci Anne Pereira, Rafael Villas Bôas, Caroline
Gomide e Eliene Novaes.
Professora da Ledoc da UFPI/Bom Jesus e professores
da Ledoc da UnB.
Integrantes do Programa de Extensão e grupo de
pesquisa Terra em Cena
Texto publicado originalmente no blog
terraemcena.blogspot.com
20/5/2019
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