O Cenas Camponesas é um coletivo de teatro político
ligado à licenciatura em educação do campo da UFPI/Campus Bom Jesus, fundado e
dinamizado por docentes dos cursos e discentes camponeses. Nosso propósito é
dispor da linguagem do teatro para estudar o real, nosso maior alimento, e,
nele, o humano, conhecendo-nos como trabalhadores, fazedores do mundo e da
história. Nesse sentido, nos interessa particularmente compreender a questão
agrária brasileira e os atravessamentos à reprodução ampliada da vida do campesinato.
Articulada a esta intencionalidade temática, nos organizamos para investigar e
nos apropriar dos recursos estéticos mais potentes para expressão e
problematização, do ponto de vista da classe trabalhadora, dos processos que
marcam a re(existência) camponesa frente ao avanço do capitalismo no campo.
E nos
interessa ainda, construir um modo de produção cultural e artístico, que
reflita e realce nossa utopia militante: a de contribuir a mudança rumo a uma
sociedade de trabalhadores livremente associados.
A escolha que fizemos por remontar a peça Posseiros
e Fazendeiros[1][1] tem a ver com essa
identidade política do Cenas e com a compatibilidade entre o nível de
complexidade do texto e de amadurecimento do elenco. Nos identificamos com a
peça na medida em que ela traz o antagonismo e vínculos entre fazendeiros e
posseiros, destacando entre os fazendeiros o capital internacional (Grande
Fazendeiro) e explorando ainda as contradições internas a cada fração de
classe. Desse modo, logo de cara, notamos que estávamos diante de uma lente
dialética para o estudo da região atingida pelo MATOPIBA, onde vivemos. Do
ponto de vista formal, a dramaturgia também nos interessou porque apontou
caminhos para a experimentação da abordagem épica, especialmente no que diz respeito
a cotejar, na encenação, dados da realidade presente e passada, extraídos de
jornais, de pesquisas científicas, de relatos do próprio elenco camponês que
vive em conflito com o agronegócio.
Quando passamos à objetivação da montagem, notamos
ainda que Fazendeiros e Posseiros nos traz uma tese - a de que o conflito entre
trabalhadores e capitalistas, que disputam a terra e tudo que vem para fins
distintos, é desigual, dada a natureza das armas de cada um. Isso ascendeu
nossa curiosidade estética e política, ativou a imaginação do grupo pela
questão de fundo que nos colocou: com que astúcia podem os camponeses
potencializar suas armas e defenderem-se da sanha do capital, dos processos de
expropriação e massacre, intensificados e complexificados no contexto da nova
modernização conservadora do país, do avanço do fascismo, do ataque às
liberdade políticas e aos direitos sociais, e a reconfiguração das forças
produtivas internacionais, desdobrado no modelo de capitalismo dependente
brasileiro? Com que astúcia podemos nós, um coletivo amador e popular de
teatro, representar a astúcia dos camponeses frente ao vigor e horror de seu
inimigo?
Tão fertilizados ficamos, pelo poder do texto e da
própria conjuntura (nacional e do Matopiba), nos pusemos a desenvolver dois
processos simultâneos e articulados como procedimento de montagem: de um lado
realizamos seminários livres de estudo. Voltando ao Brecht (Horácios e
Curiácios), percebendo que deveríamos explorar mais as nuances dos personagens
em cenas, as incongruências internas dos seguimentos sociais em luta,
perscrutar a real natureza e alcance de seus interesses e ações desses
sujeitos, nos perguntar sobre qual a raiz e o impacto do negócio de terras,
águas, minérios e gentes no sul do PI, olhar para as armas da disputa de
fazendeiros e posseiros alertas, pois “em uma coisa existem muitas coisas”.
Motivados por fazer da peça um registro da história camponesa no PI,
pesquisamos os documentos históricos que registram, dando notícias e detalhes,
de como chegamos até o estado de coisas atual: cartas de sesmarias, documentos
que da Comissão Nacional da Verdade que ajudam a explicar a relação entre
escravismo e cativeiro da terra, que revelam a relação entre ditadura e
massacre das organizações camponesas par
i passu com seu avanço... Às pesquisas das fontes históricas agregamos a
pesquisa musical e o estudo teórico, por exemplo, o da natureza do dinheiro, a
derradeira arma dos fazendeiros. Por outro lado, fomos incorporando esses
elementos nos processos de formação dos personagens, a partir de laboratórios
em que lançamos mão de jogos e técnicas do teatro do oprimido (por exemplo,
interrogatório na berlinda). Os seminários e laboratórios culminaram (e têm
culminado) no processo de ensaios, durante os quais nos, professores e
estudantes, definimos a dramaturgia. Nesta definição têm sido bem influente o
trabalho do Coletivo Terra em Cena conta Blusa Azul, e o trabalho do Coletivo
Fuzuê com o qual tomamos contato recentemente.
No fim das contas, não estamos remontando exatamente
Posseiros e Fazendeiros: tomamos a peça como fio condutor para uma grande
experimentação teatral, motivada pelo desafio de contar a questão agrária e
camponesa do PI de um jeito que nos faça amar a liberdade, o trabalho e a Vida,
e de aprender, tal como disse Nara Leão, a aceitar tudo, menos o que pode ser
mudado. A estreia dirá se fomos capazes de informar, comunicar e mobilizar
junto público essas questões e emoções tão necessárias na luta em defesa dos
territórios camponeses.
Kelci Anne Pereira
Texto publicado originalmente no blog terraemcena.blogspot.com
2/4/2019
[1] A peça, montada pelo coletivo do MST “Filhos da Mãe...Terra”, sob direção de Douglas Estevam.
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