Cenas Camponesas estuda “A peste”, de Albert Camus, como estratégia de análise da conjuntura política e pandêmica atual e como direito humano.
“Há uma ameaça real que paira sobre nossas cabeças”
Albert Camus
A pandemia desencadeada pelo novo Corona vírus ocasionou mudanças radicais na sociedade, nas instituições, na rotina das pessoas, obrigando-nos a recriar e a repensar nossas formas de viver, de (re)existir.
As pessoas que tinham empregos fixos tiverem que construir estratégias para continuar trabalhando; outras perderam seus empregos. A educação também profundos impactos; muitos estudantes tiveram sua vida escolar interrompida. Com a cultura não foi diferente, os espaços socioculturais deixaram de desenvolver suas atividades como faziam antes. Tudo porque, com a pandemia, não se pode realizar ações que geram aglomerações de pessoas, haja vista que manter o distanciamento social é uma das principais estratégias de enfrentamento ao COVID. Para agravar ainda mais a situação, o Brasil vive um momento de profunda crise política, decorrente do desmonte dos direitos sociais como diretriz de governo central. Nesse contexto, a vida de alguns parece não ter valor aos olhos do Estado, que pouco atua para evitar a morte em massa, sobretudo de pessoas pobres e negras. Nesse contexto, que o conceito de necropolítica (categoria política baseada aceitação da morte de alguns tipos sociais, proposto por Achille Mbembe) ajuda a explicar o avanço do Corona vírus no país.
Apesar desse caos cruento instaurado no país, nós, do Coletivo Cenas Camponesas (da Universidade Federal do Piauí-UFPI, vinculado ao Terra em Cena da UNB), não baixamos a guarda: seguimos interessados em aprimorarmos nosso espirito e nossa capacidade de mudar o mundo. Com tais motivações, adotamos como estratégia de luta e resistência à pandemia e à necropolítica, o trabalho de Tertúlia Literária Dialógica com obra “A Peste”, de Albert Camus. Considerado filosofo existencialista, por uns, ficcionista por outros, o autor nos brinda como obra de espantosa atualidade.
Na obra, escrita no período do pós segunda guerra mundial, Camus utiliza-se da metáfora da peste bubônica para denunciar o avanço do nazifascismo na Europa ao mesmo tempo em que anuncia a solidariedade como possibilidade humanista frente ao horror e ao absurdo do totalitarismo armado. Trata-se de uma peste transmitida por pulgas de ratos, favorecidos pelo lixo acumulado nas ruas de Orãn, cidade Algelina em que a narrativa é ambientada. Peste essa na qual os concidadãos argelinos não acreditaram imediatamente; demoraram a admitir o poder avassalador da doença, que se alastrou como pólvora. Entre corpos de ratos e homens, o autor maneja as palavras, compondo uma estética do absurdo, que nos faz refletir sobre qual o sentido de vivermos em guerra e a quem interessa que ela ocorra. Guiados pelo enredo, podemos concluir que não sentido algum nisso, sentido relacionado à vida; a guerra, assentadas em pretextos falseadores dos verdadeiros interesses do Estado e da elite que a promovem, é realmente um absurdo.
Para acessar obra de tamanha grandeza e nos apropriarmos da viagem reflexiva e sensível que ela permite, funcionando como lente para a compreensão dos nossos tempos, realizamos a tertúlia literária dialógica, que organizamos da seguinte forma: durante a semana, estudamos algumas paginas do livro e em dia e hora marcados anteriormente, em encontro virtual, discutimos o trecho lido. A tertúlia literária dialógica é uma atividade cultural e educativa desenvolvida na Escuela de Personas Adultas de La Verneda de Saint Marti nos anos 60, para facilitar o acesso e a democratização da literatura junto a estudantes de EJA. O método da tertúlia se baseia nos princípios diálogo igualitário, dimensão instrumental, criação de sentido, transformação, inteligência cultural, igualdade de diferenças e solidariedade.
A partir de tais princípios, nós, participantes do círculo literário, relacionamos a obra (escolhida coletivamente com base na força das ideias, em detrimento das ideias de força) com nossas experiências, emoções e lembranças, bem como com a realidade social de nossas cidades, regiões e país.
Paralelo a isso, também estudamos a obra adaptada para teatro, encenada pelo autor Paulo Osório, em forma de monologo, sob direção Vera Holtz e Guilherme Leme. Nosso propósito inicial era criar uma série de vídeos curtos com o texto proposto para teatro e divulgarmos em redes sociais e outros canais de comunicação aos quais os camponeses têm acesso.
Mas porque o desejo de aproximar camponeses da literatura mediada por vídeo? Primeiro, porque o teatro em si, como experiência de proximidade humana, não pode ser realizado neste contexto. Segundo porque vemos a arte como um direito. Sobre isso, vale a pena acrescentar mais algumas linhas a este texto, lembrando Antônio Candido.
Em seu ensaio seminal, intitulado “O direito à literatura”, o autor nos mostra que a fruição artística (no caso do ensaio, a literária), promovem a elevação do espírito e a humanização. Pelas tramas do texto poeticamente comunicado, o leitor exercita a alteridade, toma distanciamento do mundo para analisa-lo desde outra perspectiva, reorganiza e reelabora suas emoção, adquire conhecimento histórico, filosófico, etc; e isso tem a ver diretamente com o poder formal da arte. Ao serem formas de humanização, as artes de um modo geral devem ser tratadas com direito de toda e qualquer pessoa. No caso dos camponeses, é fundamental que o vínculo com a literatura seja refeito, corrigindo uma dívida histórica do Estado com tais seguimentos. Divida essa que se mostra real e objetivada na ausência de bibliotecas na maioria das escolas do campo, no próprio fechamento das escolas, no analfabetismo expressivo entre jovens e adultos rurais.
Frente a isso, e obviamente que sem naturalizar o analfabetismo, pensamos que a leitura dramática filmada da obra clássica A Peste, decorrente de sua apropriação por meio de tertúlias, pudesse favorecer a restauração do direito camponês à literatura.
Atravessamos muitas dificuldades nesse processo e outras ainda virão. O acesso à internet na zona rural é precário; as telecomunicações não foram democratizadas. Pensamos então em produzir programas de rádio com o texto que faríamos para audiovisual o que facilitaria a veiculação do mesmo em rádios comunitárias rurais. Este é então, no momento atual, nosso desafio!
Devemos ressaltar que conforme avançamos no trabalho com a obra fomos refletindo sobre questões importantes que a nos proporciona. Começamos fazer uma analise da situação atual do Brasil, a partir da observação de como as pessoas trabalham, amam e morrem, como propõe o autor que façamos se quisermos analisar uma sociedade.
Em meio a esse processo, percebemos que no Brasil, com o atual governo e a pandemia, as pessoas mortas são tratadas como sem importância, são apenas números. Temos um presidente que não considera como prioridade do Estado assegurar um programa de renda básica para que as pessoas possam permanecer em caso. A renda básica foi arrancada pela força das circuntâncias e do poder popular e, ainda assim, de modo precário. Este mesmo presidente, quando questionado sobre as pessoas mortas, expõe sua posição com o “e daí? Eu não sou coveiro, quer que eu faça o que?”; ou então: “eu lamento, mas é o destino de todos nós”. Naturalizar e ignorar a morte dos “de baixo” foi uma atuação marcante do nazifascismo! E amor das pessoas pelos entes queridos vítimas do Covid não importa também, nesta lógica da necropolítica. Desta forma, percebemos relações diretas da obra com o atual governo brasileiro, que a cada dia lança uma nova declaração na qual, claramente, deixa explicita a sua falta de comprometimento com a vida do povo brasileiro, em especial a vida dos excluídos do direito às condições mais básicas de sobrevivência.
O avanço de um “neofacismo” à brasileira que a obra nos ajuda a vislumbrar vem também disfarçado de “anticorrupção”, quando ouvimos do chefe de estado que “precisamos varrer a ameaça comunista”, e varias pessoas começam a apoiar essa atitude, associando ciência à comunismo e comunismo como ameaça aos “cidadãos de bem”.
Reflexões como estas são comuns de encontrarmos quando estamos discutindo sobre a obra. O absurdo que está posto diante de nós em pleno 2020 é revelado por um texto escrito em 1947. Tais reflexões são importantes porque entendemos que elas nos ajudam a nos humanizar; a partir do momento que entendemos o que não queremos ser e fazer passamos a modificar a forma como atuamos na vida. E a arte enquanto uma forma de enxergar o mundo nos proporciona a capacidade de metaforizar a vida, de pensar novas formas de ver e construir o mundo humanamente. Isso tem nos ajudado nesse processo de reconstrução de novas formas de imaginar o real. Se não acreditamos que uma situação possa mudar não lutamos para mudá-la. Através da arte, fazemos estamos nos apropriando do sentimento de imaginação de nós e de uma nova sociedade; o ato de imaginar é revolucionário, pois podemos idealizar algo e lutar para sua construção, podemos desejar o que expressou Nara Leão no festival Opinião: “eu quero me ensinem aceitar tudo, menos o que pode ser mudado”
Marciel Rocha
Kelci Anne Pereira
Camila Cerqueira
Excelente proposta, e importantíssima reflexões, queridos! Abraços a todes!
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