Quando fomos atingidos pela pandemia, levou um tempo até encontrarmos um caminho novo para nosso trabalho com arte e educação popular. A necessidade de isolamento social nos roubou a chance do encontro, o olho no olho, a respiração e a transpiração compartilhada sem o que não se faz teatro.
Mas, de tanto pensarmos juntos em alternativas, acabamos por pensar certo, recorrendo à literatura como meio para reimaginarmos o mundo, que ruía a nossa volta; era preciso buscar formas para sobreviver, reinventar o encontro com a esperança que se esfacelava diante do encontro trágico entre o coronavírus e o bolsonarismo.
Iniciamos então a tertúlia literária dialógica virtual em torno do livro “A Peste”, de Albert Camus escolhida porque precisávamos nos encontrar com uma poética que nos ajudasse a elaborar a morte que se avizinhava, que nos permitisse ampliar nossa compreensão sobre o Estado fascista que naturalizava de forma vil a perda de tantas almas.
O diálogo igualitário a partir do metafórico texto A Peste, nos reposicionou diante de nossa própria vida em tempos de absurdo. A arte como mediadora de nosso círculo de educação popular, do qual desfrutávamos professores e camponeses educandos/as da educação do campo, mostrava seu potencial humanizador, tal como nos ensinou Antônio Candido*.
A tertúlia foi tão rica, o livro tão arrebatador como lente de aumento para a nossa realidade intima e social, que quisemos passar aquele texto pelo nosso corpo, pela nossa voz, pelos nossos movimentos e gerar um vídeo arte transfigurando a Peste para torna-la acessível às comunidades camponesas do PI.
A linguagem audiovisual nos deu a chance, ainda que isolados, de nos experimentarmos como atores sem a presença do público. Aprendemos a nos ver pelo olho mágico da câmera de celulares e a plasmarmos cenicamente, com essa mediação, nossas intenções comunicativas e artísticas.
Foram desafiadores os processos de transfiguração da literatura para o vídeo: da elaboração do roteiro às filmagens, passando pela montagem até a escolha de intertextos da narrativa do livro com a catástrofe do real. Vítimas em dois tempos históricos de Estados genocidas metaforizados em A Peste foram honradas; os amores interrompidos e dilacerados foram revisitados; o trabalho alienado e roubado repensado como ato criativo e criador**. Com as luzes apagadas no horizonte histórico de nossa sociedade, ascendemos as luzes da criatividade do espírito para driblar a debilidade de nossos meios técnicos de produção audiovisual. Inventamos microfones calçando meias em celulares; fizemos da cozinha de casa cenários de atuação de um médico que se prepara para um dia de trabalho e dor, vendo falir seus conhecimentos em cadáveres que tombam por toda a cidade vitimados pelos ratos que se multiplicam e agem sem escrúpulo. Tudo, entretanto, sem perder de vista nosso desafio de narrar com sentido histórico, poético, crítico.
Em meio a este trabalho, também decidimos criar o projeto de escrita de si denominado Recria a Tua Vida, estimulando os estudantes e trabalhadores da universidade em isolamento a se expressarem literariamente, registrando suas emoções durante a pandemia e metaforizando a vida neste ato.
Hoje, estamos próximos da finalização de nosso primeiro vídeo-arte e definindo as estratégias de circulação e de criação de círculos de diálogo em torno de nossa humilde obra. Planejamos que cada ator camponês organize sessões de tertúlias cinematográficas dialógicas em suas respectivas comunidades rurais, tomando-se todos os cuidados para evitar que os participantes se contaminem com o Covid. O acesso à internet para a maioria dos camponeses é ainda imaginário; sendo necessária a exibição in locu. Ao mesmo tempo, planejamos as mesmas tertúlias aconteçam virtualmente.
Em breve devemos lançar o livro Recria Tua Vida e promover tertúlias também em torno dele.
Acreditamos que a arte nos ajuda a criar o saldo, tal como o poetado por José Paulo Paes***: ela nos ajuda a não ter medo do escuro, ainda que a luz esteja apagada, e a reimaginar formas para reascender as cores do horizonte vindouro.
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* Em seu ensaio "O direito à literatura", Candido pontua
** No terceiro parágrafo da obra, pra ambientar o leitor na cidade argelina Oran, onde se passa "A Peste", Camus escreve: "Uma forma cómoda de travar conhecimento com uma cidade é procurar saber como se trabalha, como se ama e como se morre."
*** A torneira seca (mas pior, a falta de sede)/ a luz apagada (mas pior, o gosto do escuro)/ a porta fechada (mas pior/a chave por dentro) - Saldo, de José Paulo Paes.
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Kelci Anne Pereira
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OBS: Para saber como se organiza uma tertúlia artística dialógica, consulte nossa matéria anterior, intitulada "Literatura e resistência em tempos de pandemia".
OBS2: As iniciativas citadas na matéria fazem parte do projeto "Arte, comunicação e agroecologia: práxis para (re)existir diante da pandemia", registrado na Prexc-UFPI, no âmbito do edital Covid-19.
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